João e Maria, homens de preto e Marisa – O fabuloso destino de F.G.
Havia um clima de plenitude no ar. Depois da execução de um repertório incrível, que incluiu todas as canções do álbum novo e outras emblemáticas de sua carreira, como Futuros Amantes, Bye Bye Brasil, Grande Hotel e Quem Te Viu, Quem Te Vê, o mestre cantou João e Maria no último bis. A platéia era um mosaico de fãs e não cabia
A comitiva passou muito rápido pela área restrita, e deixou um rastro de fãs – do presidente e do cantor – à sua frente. Uma fila de mais ou menos quinze pessoas, pra ser exato, esperando pela chance de entrar e encontrar seus ídolos. Passei ao lado da fila e simplesmente empurrei as barras de metal que abriam as portas, pra espanto do segurança que guardava o local. Acho que ele não teve coragem de sequer cogitar o motivo da minha entrada, menos ainda de me vetar, tamanha a minha segurança e convicção ao passar pela entrada. Não fiz nada de caso pensado, mas o fato era que aquela podia ser a chance de estar com o mestre, e nada me intimidaria. Então meu lado cênico dominou meu comportamento e tudo fluiu a partir daí. Verdade que o figurino também ajudou: infelizmente num país tropical como o nosso, ainda recebem status de confiança e poder as pessoas que insistem em se vestir contradizendo o clima. Eu vestia um terno, e acho que a roupa foi crucial para que o segurança acreditasse que eu realmente era alguém nos bastidores, mesmo ter qualquer crachá ou idade suficiente pra isso.
Ao entrar na área restrita, encontrei com uma escuridão enorme. Aparentemente, não tinha mais ninguém ali. Então pensei que uma saída de luz indicaria um caminho, e foi o que busquei. O lugar parecia um labirinto, e ao mesmo tempo eu sabia que não podia demorar, afinal a qualquer momento alguém da produção podia chegar e acabar com minha peregrinação. Pensando nisso, vi um ponto de claridade no meio do breu e andei em sua direção. Empurrei outra porta e cheguei a um lugar cheio de movimento. Na minha frente, uma comitiva presidencial de oito carros. À esquerda, a saída VIP do show: embaixadores, atores, políticos e tudo mais. À direita, um pequeno curral abrigava um batalhão de repórteres e um pedestal com seus respectivos microfones e gravadores. E no meio disso tudo... EU. Bem no meio da área mais inacessível.
Ninguém prestou muita atenção na minha presença, afinal o burburinho era grande. Mas de repente eu prestei atenção na minha localização, e percebi que ocupava um lugar privilegiado demais. Foi quando ouvi um breve silêncio e notei olhares cheio de canivetes, inclusive de um segurança 4x4 que tentava conter a imprensa. Pensa rápido, pensa rápido... Bom, se alguém vier falar comigo vou dizer que sou da Biscoito Fino. A gravadora tem que ter acesso irrestrito ao espaços do seu artista... E aí, quando já estava prestes a ser capturada por um dos homens de preto, a comitiva presidencial invadiu o espaço. Não tive dúvidas, entrei na muvuca e sumi no meio dos inquilinos do palácio. Ajustei meu passo ao ritmo deles – eita, Lula e adjuntos! Quem são essas meninas, netas do presidente? E essa mulher de azul, acho que é uma atriz famosa, qual delas? Muita informação! – e notei que a Marisa estava sorrindo pra não sei quem, talvez pro teto, e insistia em arrumar uma estola de lã em volta do pescoço maior que ela.
“Bom, já tô aqui mesmo, é agora ou nunca...” Pensei. E aí me aproveitei do autismo da primeira-dama pra garantir minha ida ao camarim do Chico Buarque. Não tive dúvidas e peguei na mão dela, e acho que ela nem notou que era eu, afinal estava cercada de outras meninas do mesmo tamanho, poderia ser qualquer uma delas. Quem ia me tirar dali ao me ver de mãos dadas com a Marisa? Aí lembrei do Neil Armstrong e me comparei a ele: aquilo foi um pequeno passo para uma fã, mas um grande salto para a humanidade.
Foi então que tudo aconteceu. Mais uma das infinitas portas se abriram, e atrás dela não tinha um macaco pavoroso nem uma loira balançando a chave de um carro... Tinha um homem lindo e solitário, de sorriso tímido e olhar sincero. Era ele na minha frente, CHICO BUARQUE DE HOLLANDA! Gritei isso pra mim mesma várias vezes, bem alto, bem louca. Do lado de fora, externava uma leve frieza diante do encontro, afinal era tudo que eu devia fazer se quisesse permanecer no recinto - agir como as outras pessoas e fingir que aquela situação era uma coisa muito normal na minha vida, sem maiores deslumbres. Lula tomou a dianteira e abraçou o mestre, parabenizou-o pelo show e começou a comandar o arsenal de fotos. Primeiro, com ele e Marisa (que a essa altura já estava liberta de mim); depois, só com ele; depois as netas, uma por uma; com Franklin Martins e a esposa; com a atriz... E quem é aquela sem contexto ali atrás?
Enquanto os outros tiravam as fotos, eu me preocupava com duas coisas: o que ia dizer, e como ia registrar aquele momento, afinal o fotógrafo era da presidência e não meu! Baixou a pobreza, e lá fui eu perguntar às netinhas se alguma delas tinha máquina digital. “Máquina? Não...” É claro que não! Quem precisa de máquina portátil quando está seguida por um profissional, com equipamento profissional, é neta ou alguma coisa muito próxima do presidente da república? Ninguém tinha máquina. E tinha chegado a minha vez... O coração disparou, fechei os olhos bem rapidinho e imaginei que não tinha mais ninguém ali além de nós dois. Nos segundos em que andei em direção ao mestre, acho que senti algo parecido à mulher que enxerga (só) seu amado no altar. Ou como aquela flor que desabrocha só uma vez em toda sua existência. Ou Macabéia na hora do atropelamento. Era ele... Abracei, e aí não teve como manter o traquejo. Apertei. Cheirei. E disse palavras confusas, que diziam tudo ao mesmo agora. Não posso dizer exatamente quantas e quais foram escolhidas, e nem em que ordem foram ditas, mas todas queriam dizer algo como:
- Você não tem idéia de como a sua obra permeou os momentos mais importantes da minha vida, melhores e piores;
- Eu sei que é um clichê, mas preciso manifestar: você realmente entende a alma feminina;
- O show de hoje e esse encontro agora são, sem dúvida, alguns dos acontecimentos mais importantes da minha vida;
- Eu amo cada nuance do seu pensamento. Amo os versos. Amo muito, tudo.
De alguma forma, essas idéias foram condensadas num jogo de palavras X* e verbalizadas
* O engraçado é que o texto desse encontro já vinha sendo ensaiado há pelo menos oito anos, na esperança de cruzar com o Chico na rua, no avião, na praia. Eram perguntas infinitas, sobre obras, personagens, contextos, nomes de música, processo criativo, tanta coisa! Mas na hora em que tete-a-tete aconteceu, tudo isso desapareceu. Só restou a vontade de agradecer, preterir as causas e falar sobre os efeitos que sua obra causa em mim desde sempre.